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Trajetória das pessoas surdas: pessoas que ajudaram a escrever essa história

O Fique por Dentro desta semana mostra algumas personalidades surdas e ouvintes que fizeram história e conta um pouco a história dos surdos.
publicado: 07/01/2021 12h50 última modificação: 07/01/2021 12h50

Trajetória das pessoas surdas: pessoas que ajudaram a escrever essa história

A história dos surdos é fascinante.  Entre exclusão, conquistas, retrocessos e reconquistas, se entrelaça à abordagem acerca das línguas de sinais e é escrita por muitas pessoas que contribuíram para a educação e formação das pessoas surdas.  Alguns pensam que só ouvintes agiram nesse processo e os surdos apenas reagiram a iniciativas. Engano! Os próprios surdos têm mostrado seu protagonismo, revelado suas habilidades e escrito sua história ao longo dos anos.

O Fique por Dentro desta semana mostra algumas personalidades surdas e ouvintes que fizeram história e conta um pouco a história dos surdos.

Pessoas surdas que fizeram história

Por muitos séculos, os surdos foram privados de educação e de vários outros direitos, mas no século XVIII aconteceram transformações profundas a partir do uso das línguas de sinais como línguas de instrução para os surdos, trazendo grandes saltos qualitativos para a sua educação e qualidade de vida. De pessoas às quais a sociedade antes considerara desprovidas da faculdade da razão, os surdos passaram a aprender com eficiência e a exercer papéis antes não imaginados para eles. Surgiram obras escritas por surdos, como as Observations de Pierre Desloges, publicada em 1779. Formaram-se engenheiros surdos, professores surdos, filósofos surdos, intelectuais surdos, líderes e militantes das comunidades surdos. Nessa época, muitas das escolas para surdos que iam sendo criadas tinham professores surdos e eram dirigidas por surdos. Os surdos também fundavam outras escolas em vários lugares do mundo.

Dentre as personalidades surdas desse período, destacam-se:

  • Laurente Clerc: professor surdo do Instituto Nacional de Jovens Surdos-mudos* de  Paris, fundado por Michael Charles de L’Epée, ensinou língua de sinais a Thomas Gallaudet. Ambos fundaram a primeira escola para surdos nos Estados Unidos.
  • Ernest Huet: professor em Paris, veio ao Brasil em 1855, visando fundar aqui uma escola para surdos. Com o apoio de D. Pedro II, fundou e dirigiu por cinco anos o Imperial Instituto de Surdos-Mudos, atual Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). O Instituto foi fundado no Rio de Janeiro, em 26 de setembro de 1857.
  • Ferdinand Berthier: Escreveu vários livros e artigos, sendo sua obra de mais notoriedade a biografia “Um surdo antes e depois do Abade L’Epée”. Foi defensor do povo surdo**, da cultura surda, da língua de sinais. Estudou no Instituto de Jovens Surdos-Mudos de Paris, onde foi professor. A base de sua prática de ensino era a identidade surda e a língua de sinais. Junto a outros companheiros surdos, criou um comitê de surdos e a primeira associação para surdos, semente para o surgimento das outras associações.
  • Pierre Pelissier: professor, poeta, membro ativo da Sociedade Central de Educação de Assistência aos Surdos Mudos. Elaborou a Iconografia de Sinais (um manual de sinais), posteriormente reproduzido pelo surdo brasileiro Flausino de Gama.

Infelizmente, os relatos da comunidade surda não parecem ter sido registrados em tão grande volume como aconteceu com as personalidades ouvintes, mas encorajamos o leitor a pesquisar em outras fontes, como na produção da professora e pesquisadora surda Karin Strobel. Um dos materiais da professora Karin é referência para esta postagem.

 

Voltando um pouco: a história anterior do povo surdo

Nem sempre os surdos foram tratados de forma humana. Strobel mostra que na Idade Antiga os surdos eram adorados no Egito e na Pérsia, pois se acreditava que eles se comunicavam com os deuses, mas na Grécia e em Roma, eles eram assassinados e os que escapavam eram escravizados. Na Idade Média, eram tidos como objeto de curiosidade, como seres estranhos. Não podiam participar dos sacramentos religiosos, não tinham direito de casar, de receber herança, etc. Alguns eram assassinados pelas próprias famílias. Isso começa a mudar na Idade Moderna. O médico e filósofo Girolomo Cardamo concluiu que os surdos tinham habilidade para a razão e podiam aprender. Ele se comunicava com os surdos por meio de sinais e da escrita. Nesse período, famílias nobres começaram a prover as condições para a educação dos filhos surdos, preocupadas com o que aconteceria com suas heranças. Assim, esses filhos eram ensinados a falar e a ler para que pudessem receber os títulos e a herança. A partir daí, surgiram diversos educadores de surdos.

Alguns educadores de surdos que ganharam notoriedade

Como mostra Strobel, Berthier argumentava que houve várias iniciativas de educação de surdos, mais ou menos eficazes, que não tiveram notoriedade. Alguns dos educadores mais citados na história dos surdos são:

  • Pedro Ponce de León (1510-1584): o monge beneditino Ponce de León ensinava a escrita, a datilologia e a oralização. Fundou a primeira escola para surdos em um monastério de Valladolid.
  • Juan Pablo Bonet (1579-1623): o padre espanhol Bonet trabalhava com treinamento da fala, datilologia e sinais e lançou o primeiro livro sobre a educação de surdos em 1620. Strobel mostra que Berthier contesta frontalmente a ideia de que Bonet teria descoberto como ensinar o surdo a falar e que esse feito poderia bem ser creditado a Ramires de Carrion, rival de Bonet e surdo congênito, que teria tido sucesso em um experimento e lançado também um livro a respeito em 1629.
  • Charles Michael de L’Epée (1712-1789): um dos nomes mais destacados nas fontes consultadas, o Abade de L’Epée conheceu duas irmãs gêmeas surdas cuja comunicação ocorria por meio de gestos. Trabalhou com os surdos pobres andarilhos das ruas de Paris, observou, aprendeu e valorizou a comunicação sinalizada utilizada por eles. L’Epée percebeu que os sinais permitiam a comunicação com os surdos e favorecia à sua aprendizagem. Criou o alfabeto manual francês e o uniu aos sinais usados pelos surdos, de maneira que liam e escreviam em francês através da ajuda de um intérprete. Na sua casa, com recursos próprios, criou a primeira escola de surdos, que em 1791 se tornou o Institute of DeafMutes, Instituto Nacional de Surdos-mudos, a primeira escola pública para surdos. O método de L’Epée, que utilizava a língua de sinais como língua de instrução, mostrou-se muito eficaz e se espalhou pelo mundo, pois a escola recebia pessoas do mundo inteiro e os discípulos de de L’Epée, inclusive professores surdos, multiplicavam o método e implantavam escolas em vários lugares. À época da morte de de L’Epée, em 1789, já havia cerca de 21 escolas para surdos na França e na Europa.
  • Thomas Opkins Gallaudet (1787-1851): com o desejo de fundar uma escola para surdos nos Estados Unidos, o reverendo americano Gallaudet foi à Europa em 1816 para buscar informações e na França conheceu Laurent Clerc. Ambos foram juntos aos Estados Unidos. Clerc ensinou a língua de sinais a Gallaudet e este lhe ensinou o inglês. Em 1817, os dois fundaram a primeira escola para surdos nos Estados Unidos, cuja língua de instrução era a língua de sinais. A partir de então, as escolas para surdos que adotavam a língua de sinais se expandiram nos EUA e a maioria dos professores de surdos eram usuários de língua de sinais, sendo muitos deles também surdos. Em 1864, Edward Gallaudet, filho de Thomas, fundou a primeira Universidade Nacional para Surdos, em Washington, a Universidade Gallaudet, referência mundial no ensino de surdos em nível superior e a primeira que tinha como língua de instrução a língua de sinais.

A continuidade no protagonismo das pessoas surdas

Os surdos seguem exercendo seu protagonismo e usando seus talentos. Continuam surgindo artistas, professores, intelectuais, escritores surdos. Alguns exemplos no século XX são:

  • Antônio Pitanga: escultor pernambucano surdo, formado pela Escola de Belas Artes, ganhou os prêmios Medalha de Prata, com a escultura “Menino Sorrindo”, Medalha de Ouro, com a escultura “Ícaro”, e viagem à Europa, com a escultura “Paraguaçu”, em 1932.
  • Jorge Sérgio Guimarães: publicou, em 1951, no Rio de Janeiro, o livro de crônicas “Até Onde vai o Surdo”, em que narra suas experiências como surdo.
  • Marlee Matlin: primeira atriz surda a conquistar o Oscar de melhor atriz, pela atuação no filme Filhos do Silêncio, de 1986.

Hoje, há muitos surdos produzindo e pesquisando sobre o povo surdo e a cultura surda. Dentre estes mencionamos as professoras e pesquisadoras Gladis Perlin (UFSC) e a própria Karin Strobel (UFSC). Vá adiante, conheça as pessoas surdas e conheça mais sobre elas!

*A expressão “surdo-mudo” era usada na época, mas já caiu em desuso. Veja o texto sobre nomenclaturas.

**Para compreender melhor o conceito de povo surdo, leia os textos de Strobel e Peixoto. Links abaixo.

Saiba mais: