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Desmistificando erros do capacitismo

Nesta edição, você vai entender as raízes de alguns pensamentos e atitudes capacitistas e qual a posição de muitas PCDs sobre isso.
publicado: 01/10/2021 16h19 última modificação: 01/10/2021 16h19

Desmistificando erros do capacitismo

                Capacitismo é o preconceito contra pessoas com deficiência (PCDs). Está enraizado na mente de muitas pessoas, se vê nas palavras, nas ações e na organização social. O Fique por Dentro já abordou algumas formas de capacitismo, mas não com essa nomenclatura.

                Nesta edição, você vai entender as raízes de alguns pensamentos e atitudes capacitistas e qual a posição de muitas PCDs sobre isso.

Para começar

                A pessoa que está escrevendo este texto é pessoa com deficiência. Diferente das postagens anteriores, peço licença para escrever em primeira pessoa, pois creio que se se imaginasse que alguns pontos aqui seriam abordados por uma pessoa sem deficiência, poderia haver algum desconforto. Não represento todas as PCDs. Somos todos diferentes, mas vou escrever sobre o que muitos de nós pensamos. Vamos lá!

Raízes das atitudes capacitistas?

                A visão capacitista é a de que nós não somos capazes, somos naturalmente menos do que os outros porque não nos encaixamos no modelo de corpo padrão do capacitismo, que, para essa concepção, é o único apto para a vida. Esse preconceito pode não ser intencional ou não ser uma aversão a nós. Sem saber, pessoas que nos amam e até alguns de nós, muitas vezes, somos capacitistas.

                Sob o guarda-chuva da visão capacitista estão crenças equivocadas, como as de que:

  • somos imaculados, crianças, com passaporte garantido para o céu para nos compensar. Como sexualidade é vista como suja por algumas pessoas, somos também assexuados;
  • a deficiência é uma tragédia, um castigo, por causa dela, todos nós somos infelizes;
  • não somos capazes, não poderemos nos desenvolver ou ter autonomia, não sairemos de casa, nem trabalharemos ou teremos nossa família. Sempre precisaremos de cuidados;
  • não temos capacidade de ser responsáveis por nada;
  • não somos parte da sociedade. O estado não precisa tomar medidas para nos incluir. Devemos ficar em instituições. Estas e as nossas famílias que cuidem de nós;
  • a única forma de tudo isso mudar é se não tivermos mais a deficiência.

           Como eu disse, alguns de nós também pensam assim, mas não todos. Abaixo, seguem algumas condutas capacitistas, desde as que parecem mais inofensivas até as que são claramente preconceito, e o que muitos de nós achamos delas.

Condutas capacitistas e como muitos de nós nos sentimos

Ter pena de nós: sofrer por termos deficiência e achar que somos infelizes. Muitos de nós somos felizes como somos, com a  nossa vida, e não apesar da deficiência. Muitos não sonhamos em ser curados. Outros sonham. Tanto uns quanto outros queremos espaços, sites, serviços e produtos acessíveis.

Nos ver como incapazes: já falamos disso, mas acrescento que nós temos direito a aprender (embora alguns pensem que na escola a socialização é suficiente para nós), temos talentos e, se recebemos o apoio adequado, podemos desenvolvê-los e contribuir com a sociedade. Quanto mais as barreiras são eliminadas e temos acesso às tecnologias assistivas, mais alcançamos autonomia.  

Se chatear se recusamos ajuda:  é verdade que precisamos muitas vezes de ajuda, pois há muitas barreiras. É verdade também que há algumas recusas grosseiras, talvez por necessidade de autoafirmação. Não defendo grosserias. Mas até quando a recusa é bem amável, alguns se chateiam. Às vezes nossa recusa é porque dá para a gente realizar a ação sozinhos, mesmo que por um caminho diferente. Parece que para a outra pessoa, somos atrevidos e ela precisa nos ajudar para fazer a sua obra de caridade e se auto promover.

Superproteção: fazer tudo para nós, não estimular nossa autonomia, não nos ensinar a assumir responsabilidades, não nos deixar andar sozinhos em ambientes conhecidos, não nos mostrar os objetos de uso comum, trazê-los para nós e não nos ensinar a usá-los. Não deixar o filho com deficiência aprender a usar o transporte público sozinho, nem a fazer atividades da vida autônoma. Não façam isso! Ao contrário, nos estimulem, cobrem, nos conheçam! Descubram que podemos ter mais autonomia do que imaginavam.

Tentar nos controlar: tentar decidir por nós sobre nossa própria vida, tentar administrar nosso dinheiro, nosso tempo, nossos passos, o que fazemos, nossas compras, etc. Algumas pessoas com deficiências específicas podem ter dificuldade com juízo de valor, percepção de malícia, uso do dinheiro, etc., e precisar de supervisão (autonomia assistida). Quanto à maioria de nós, podemos controlar nossa vida, tomar nossas decisões e assumir consequências. Parem! Vocês não querem ser controlados.

Achar que não fazemos nada: acreditar que só saímos de casa para passear ou ir ao médico, não trabalhamos, somos todos “aposentados”, passamos o dia dormindo, etc. Às vezes, ao sair de casa, ouvimos alguns comentários como: “tá indo passear?”, “vida boa”, “vai ao médico?”. Quem já nos conhece até que faz perguntas diferentes, mas ainda falam algumas coisas que a gente às vezes engole no seco... quando não perde a paciência.

Superestima, admiração exagerada por nossa autonomia, por morarmos sozinhos, casarmos, termos filhos, trabalharmos, usarmos computador e celular, etc. Claro que muitas pessoas não sabem ainda o que podemos ou não podemos fazer e que há dificuldades. Não estou diminuindo essas pessoas, só estou tentando colocar as coisas no lugar. Nos veem como heróis por coisas pequenas ou até por talentos que não têm nada a ver com a deficiência. Sabe quando alguém diz: “ela canta tão bem, mesmo sendo cega...” Oi? Qual a relação entre ver e cantar? Nos superestimam por lidar com barreiras, mas o que queremos mesmo é a remoção delas.

Infantilização: nos tratar como bebês, mesmo que tenhamos amadurecido física e emocionalmente. Algumas PCDs se comportam de forma infantil por causa desse tratamento e não por não poderem amadurecer. Não estou falando contra tratamento afetuoso. Cada pessoa tem uma forma de ser. Muitos de nós gostamos de mais afeto também. Conheçam-nos e vão entendendo como nos tratar, mas nos tratem conforme nossa idade e não como bebês.

Ver somente a deficiência e não nos ver:  a deficiência não nos define, embora seja parte de nós e influencie decisivamente nossa forma de estar e perceber o mundo. Temos uma história, uma forma de ver a vida, uma personalidade. Nossa subjetividade e nossa história fazem de cada um quem é.

Divinização: achar que somos anjos imaculados e assexuados. Nós somos humanos como vocês. Nos alegramos, ficamos tristes, amamos, aborrecemos, temos caráter bom ou ruim, temos sonhos, decepções, vontades, paixões, acertamos e erramos. Ah, também somos sexuados e reprodutivos. Muitos não queremos esse pedestal onde nos colocaram. Alguns querem para massagear o ego e outros para se aproveitar.  Lembra que falei do caráter? As pessoas sem deficiência próximas a nós (familiares, cônjuges, etc.), também são consideradas anjos, pessoas abnegadas, que cuidam o tempo todo de nós. Às vezes elas não nos dão metade da ajuda que vocês supõem. Por que são más? Não! Porque não é necessário. Não precisamos todos de ajuda ininterrupta.

Discriminação: dificultar ou negar a nossa participação em alguma atividade, até quando a deficiência não atrapalha a nossa participação. Ex.: nos negar oportunidade de emprego, preferir pessoas com deficiências aparentemente mais leves para preencher as vagas para PCDs nas empresas, nos impedir de fazer negócios ou impor algumas exigências, como a presença de um procurador, mesmo que sejamos letrados e as mesmas exigências não sejam feitas a pessoas letradas sem deficiência.

Crítica e adiamento de direitos: não priorizá-los, achar que são privilégio ou até negá-los. Ex.: não acessibilizar cidades, prédios, sites, produtos, delegar adequações curriculares para o AEE, achar que ampliação do tempo para realizar provas, designação de assentos em locais específicos ou prioridade são privilégio e injustiça, afirmar que tomamos o lugar de pais de família por trabalharmos. Somos tão cidadãos quanto todos. As adequações são necessárias porque as pessoas são diferentes. Não tomamos o lugar de ninguém. Conquistamos direitos e espaços a duras penas e ainda há muito a conquistar.

Tratamento desumano: ao longo da história, muitos de nós foram sumariamente abusados sexualmente, espancados, mantidos em cárcere privado e mortos. Admitir esse tratamento a uma pessoa por sua condição ou origem não tem nome e, no contexto da deficiência, é talvez a forma mais intolerável de capacitismo. Se você conhece ou vive algo assim, denuncie!

Não forme uma imagem engessada de nós, conheça-nos!

                As pessoas são diferentes, as diferentes deficiências indicam diferentes necessidades e, muito além da deficiência, as oportunidades que temos impactam o desenvolvimento. Assim, não traga uma imagem já formada, não nos subestime nem superestime. Conheça-nos, acredite em nós, estimule-nos e cada um vai revelar o seu potencial.