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A abordagem social em torno dos sujeitos cegos

Quais serão o entendimento e o tratamento prevalentes no senso comum em relação a pessoas cegas? Como a sociedade lida com a visão e com a cegueira? Quais concepções fundamentam a postura da sociedade ante esses sujeitos? O Fique por Dentro desta semana propõe um diálogo a respeito da abordagem social em relação a essas pessoas
publicado: 13/02/2019 14h05 última modificação: 13/02/2019 14h05

Ao longo da História, pessoas cegas vivenciaram um tratamento oscilante entre a divinização e o abandono. Passaram, na Idade Média, pelas casas de acolhimento e, no bojo das lutas pela inclusão social de sujeitos com deficiência, que ganharam fôlego principalmente a partir do século XX, tiveram pavimentado o caminho pelo qual chegaram, atualmente, a muitas e diferenciadas posições sociais, acadêmicas e laborais, ao protagonismo da luta pela efetivação de seus direitos e da própria vida, cenário em que se observam  também mudanças conceituais e avanços científicos que permitem hoje que a ciência e as próprias pessoas cegas desconstruam concepções inferiorizantes a seu respeito*.

  1. 1.       Considerações sobre as condições de visão e cegueira              

A visão é um sentido de inegável relevância para o ser humano, e proporciona possibilidades importantes, como a capacidade da simultânea e rápida percepção espaço-ambiental e de captação de informações a longa distância. Na apreensão das informações do meio, a visão é acompanhada pelos demais sentidos, a partir do gerenciamento da atividade cognitiva. Nesse conjunto, nota-se que a natureza das informações captadas pelas outras vias sensoriais é, de fato, distinta da visual e que algumas informações apenas são passíveis de apreensão por essas vias e não pela visão. Todavia, a interpretação e o significado das informações sensoriais não residem nos próprios sentidos. Os dados são interpretados pelo cérebro e significados a partir do aprendizado construído nas relações sociais, em um trabalho articulado entre sentidos, cérebro e funções psicológicas superiores.

Não obstante, em nossa cultura, parece haver uma supervalorização da visão nos âmbitos sensorial e simbólico, sendo este sentido considerado o mais importante. Observa-se que os sujeitos que enxergam (aqui chamados videntes) vão, ao longo de seu desenvolvimento, aprendendo gradativamente a privilegiar a visão e a conscientizar-se do seu uso, e que normalmente não atentam para a atuação dos outros sentidos. Assim, a supervalorização da visão parece fundamentar a compreensão de que a sua ausência constitui empecilho para conhecer, aprender, participar da cultura, enfim, como fator que minimiza o caráter humano do sujeito.

A cegueira, todavia, além de não constituir esse empecilho, revela a plasticidade característica do ser humano. Nessa condição, o cérebro reconfigura o seu trabalho em relação aos outros sentidos e às funções psicológicas superiores, que passam a atuar de maneira diferenciada e potencializada, mobilizando a elaboração de diversas estratégias alternativas de interação com o meio. Consequentemente, são demandadas adequações sociais, atitudinais, estruturais, etc. que permitam a participação de pessoas nessa condição.

A seguir, busca-se desmistificar algumas concepções e, posteriormente, orientar quanto a práticas a serem evitadas, enfatizando que essas noções não se esgotam aqui.

  1. 2.       Desmistificando algumas concepções
  • Cegos não possuem sensibilidade nem capacidades sobrenaturais: o exercício que pessoas cegas empreendem dos sentidos remanescentes, a capacidade de reconhecerem pessoas e elementos materiais e sociais, o desempenho autônomo que empreendem em diversas situações não decorrem de poderes sobrenaturais, mas do trabalho articulado entre cognição e sentidos, favorecidos por tecnologias assistivas.
  • A experiência da cegueira não é necessariamente de escuridão: nos casos de completa ausência de percepção visual, considerando cegos congênitos, o sentido social de escuridão é compreendido, mas a sua noção sensorial simplesmente não faz sentido, por não ser parte da sua experiência perceptiva. Nos casos em que há percepção de vultos e luminosidade, pode-se observar que se trata de uma experiência ligada à visualidade que anula a possibilidade de constante escuridão.
  • O cego não está alheio à relação com as cores: apesar de a percepção sensorial direta das cores ser inviável para o cego, as vivências sociais vão permitindo, para além da consciência da sua existência, a compreensão acerca da sua presença em elementos naturais e sua significação em dados contextos sociais. Através das interações sociais, o cego sabe que plantas são verdes, que o sangue é vermelho, que o céu é azul, etc.; sabe que o preto pode estar associado ao luto, o branco à paz, etc.; através de pessoas próximas, sabe a cor dos próprios cabelos, dos olhos, da pele, das roupas, de modo que alguns, a partir dessas informações, constroem o conhecimento que lhes permite combinar adequadamente vestuário e acessórios.
  • Cegos não têm acesso direto ao valor das cédulas de dinheiro pelo tato: o conhecimento sobre o valor correto do dinheiro pessoal normalmente decorre de uma organização que inclui o ordenamento das notas por valor, auxiliado por alguém de confiança e que é favorecida, até certo ponto, pelas cédulas de tamanhos diferenciados, em circulação no Brasil há alguns anos. Atualmente, há aplicativos para celular que identificam o valor das notas e permitem essa organização.
  • Os cegos não reconhecem a todos pela voz em todos os momentos: além de ser necessário um tempo para registrar as particularidades da voz de pessoas que se acaba de conhecer, há dificuldades em reconhecer as vozes de pessoas com quem se convive pouco. Outros fatores podem dificultar o reconhecimento de vozes já conhecidas, como alterações vocais causadas por enfermidade e ambientes ruidosos.
  • Os cegos não contam as paradas de ônibus para descer na parada certa: cegos apreendem o percurso dos ônibus nos quais viajam corriqueiramente, a partir do conjunto de informações fixas perceptíveis pelo corpo, como relevo, sinuosidade, acústica de alguns trechos, etc., associados a pistas visuais, no caso daqueles que ainda têm algum tipo de percepção visual.
  • Cegos não precisam sempre estar acompanhados por videntes: há muitas possibilidades que proporcionam autonomia aos cegos, o que lhes permite transitar desacompanhados em ambientes que conheçam. Isso não anula a necessidade de ajuda em algumas situações, principalmente considerando a falta de acessibilidade e o fato de muitas situações se resolverem visualmente. Recomenda-se perguntar à pessoa cega se necessita de ajuda e como proceder para ajudar. Caso a resposta seja negativa, o vidente não deve se ofender. Na grande maioria dos casos, a negativa ocorrerá porque a pessoa já consegue executar a ação sozinha, mesmo que em um tempo e por caminhos diferenciados.
  • Não há problemas em utilizar as palavras "cego/cega" ou ver/enxergar: para sujeitos conscientes de sua condição e que a aceitam naturalmente, essas palavras não são inferiorizantes. Aceitá-las não é uma resignação dolorosa, mas o reconhecimento de uma característica própria. Nessa perspectiva, essas palavras devem ser empregadas naturalmente, como o são, por exemplo, neste e em outros textos do Fique por Dentro. Todavia, o emprego dessas palavras é ofensivo quando configura a intenção de ofender, ou em casos em que a pessoa não lida bem com a cegueira. Semelhantemente, a palavra "ver" não é ofensiva nem causa dor a pessoas cegas e pode ser empregada com naturalidade.

 

  1. 3.       Atitudes inadequadas
  • Comunicar-se por gestos ou outros mecanismos visuais: ante a inviabilidade de acesso de pessoas cegas à modalidade gestual, é necessário não anular o gesto, mas acompanhá-lo sempre pela linguagem oral e, em alguns casos, pelo toque em seu braço (chamar a atenção, por exemplo), lembrando-se sempre de avisar quando chegar ou sair, de modo a não deixá-la falando sozinha. Notadamente, é extremamente antiético e desleal com a pessoa cega comunicar-se visualmente com terceiros a seu respeito sem que ela saiba.
  • Abordar bruscamente a pessoa cega: em vias públicas ou outros espaços, ante uma pessoa cega desacompanhada de vidente, é comum que pessoas tomem-na pelo braço sem avisar, empurrem-na em alguma direção, puxem sua bengala, entre outros comportamentos semelhantes, que dão à pessoa cega uma impressão de abordagem súbita, que assusta e gera insegurança. Recomenda-se, antes de tudo, apresentar-se e oferecer ajuda.
  • Interpelar ao acompanhante vidente quando o assunto diz respeito à pessoa cega: pela imagem de pessoas cegas como sendo necessariamente tuteladas por outrem, esse comportamento é comum, manifesto, por exemplo, por pessoas que se acaba de conhecer, por atendentes em estabelecimentos comerciais, etc., mas é incômodo e desnecessário. A pessoa cega pode e precisa responder por si, indicando, por exemplo, o que deseja comer ou comprar, como se sente, o que precisa, etc.
  • Tratar como criança: a imagem infantilizada parece estar atrelada à pessoa cega, independentemente da idade e de suas vivências. Essa representação do "cego criança" é manifesta por videntes, por exemplo, na modulação infantilizante da voz. Recomenda-se dispensar à pessoa cega o tratamento correspondente à sua faixa etária. A interação e a convivência vão mostrando a maturidade e o conhecimento que o indivíduo possa ter.
  • Compaixão exacerbada: abordagem decorrente da visão de deficiência como tragédia e que gera atitudes de superproteção e infantilização, toleradas por alguns por educação, mas bastante desagradáveis, e nociva para outros que as acolhem como naturais. Deve-se buscar conhecer as potencialidades da pessoa, renunciar à pena e desenvolver práticas que promovam a autonomia em lugar da superproteção.
  • Indiferença/negligência: postura manifesta pela recusa (de governos e de cidadãos) em promover condições inclusivas, a qual deve dar lugar à conscientização de que todos são diferentes quanto a inúmeras características, mas são igualmente humanos e devem ter os direitos respeitados.
  • Omissão em lugar de auxílio: postura que pode decorrer da pena ou da negligência, e que se manifesta pela omissão do observador ante alguma falha ou situação constrangedora à pessoa cega. Recomenda-se informá-la discretamente acerca da situação e oferecer ajuda.

 

  1. 4.       A importância de conviver para conhecer e desmistificar concepções

        Ainda há um caminho na construção de práticas sociais que favoreçam a inclusão de pessoas cegas e uma convivência sem atropelos entre cegos e videntes, o que pode ocorrer a partir do momento em que ambos se dispõem a não se restringir à deficiência, mas a se conhecer mutuamente, a descobrirem as possibilidades e dificuldades de ambos e a admitir as próprias, sem cobranças e com a disposição de aprender com o outro. Compreende-se que, via de regra, o vidente está marcado pelas já referidas concepções e o cego, calejado por muitos constrangimentos ou por uma superproteção ainda mais limitante, daí que um convívio, já no início, desarmado e aberto ao aprendizado, possivelmente será sadio e favorável à promoção da inclusão.

 

*Obs.: Sobre o percurso histórico dos sujeitos com deficiência e as condições atuais da sua inclusão, referentes também aos sujeitos cegos, sugere-se conferir o texto A inclusão social de pessoas com deficiência, publicado no Fique por Dentro, no dia 05/12.